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Notícias

Lágrimas secam sozinhas

publicada em 30/07/2011

‘Pela longa história ‘de amor e ódio’ entre a humanidade e as drogas, já passa da hora de abordarmos o assunto com mais seriedade, no âmbito não só da segurança pública, mas da saúde, da assistência social, da educação e da cultura’


Bruno Almeida

Com a recente e prematura morte de Amy Winehouse, o maior sucesso de sua carreira - a canção ‘Rehab’ - na qual a compositora e intérprete comenta que não iria aceitar que lhe internassem em uma clínica de reabilitação, tem tudo para se tornar, se já não se tornou, um hino também para os caretas, e defensores da ordem, de plantão. Agora é o momento deles apontarem o dedo e exemplificarem: ‘Estão vendo? Para o viciado só existe três caminhos: cadeia, clínica ou cemitério...e como essa jovem, após algumas prisões, não quis mais se internar...’.
Como se a vontade da pessoa a ser ajudada não fosse preciso, ou a internação fosse a solução pra tudo, quem sabe até uma moda! Como se tudo fosse muito simples, muito fácil. Como se não fossem justamente clichês como esses que ajudassem a criar, na mente ativa de um verdadeiro adicto (e nesse caso artista), a rejeição a qualquer tipo de socorro, sob o ponto de vista: ‘a vida é minha e você não pode decidir algo tão importante sobre ela por mim, está tudo sob controle e vou mostrar pra você que posso sair sozinho quando eu quiser e se eu quiser, aliás, quem é você, cheio de problemas, para me ajudar?’. Escrevo este artigo como repórter, que não pode, em momento algum, deixar de ser observador e questionador, e também como ex-interno de uma clínica de reabilitação, e, claro, apreciador da boa música.
Amy foi um grato presente. Bebendo direto na fonte do jazz e do soul, ela não foi só a branca de olhos verdes e voz negra que inaugurou o chamado neo-soul em meados da primeira década do século XXI, e que hoje inspira muita gente boa. Ela seguiu a sina dos loucos. Sua trajetória criativa, rápida e alucinada, culminando com o game over aos 27 anos, ressuscita as vidas e obras de Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrinson, e outros talentos que, curiosamente, com a mesma idade, partiram sendo vítimas da própria história (Kurt Cobain parece que cansou de se drogar e se matou com um tiro de espingarda). E daí vem os caretas (Cazuza, com toda sua poesia, dizia que seus heróis morreram de overdose e que ele tinha medo de ficar careta, careca) com seus discursos prontos, cheios de frases feitas e conselhos: ‘Façam arte! Façam música, aprendam um instrumento! Pratiquem esportes, façam cursos! Trabalhem, ganhem dinheiro, façam investimentos, montem família!’ Mas, espera: mais arte e música do que Jimi, Joplin, Jim, Kurt (e pra não citar nossos tupiniquins Elis, Tim, Cássia) e agora Amy, fizeram? E no esporte, o que dizer do gênio Maradona? Não, não, não, algo está muito errado.
E a começar pela nossa própria sociedade, onde eu posso ver pessoas respeitadisímas e super-produtivas, pais exemplares, eximes profissionais, mas que nunca dispensaram seus chopinhos, baseadinhos, charutinhos, tequinhos do fim-de-semana, também posso ver julgamentos oportunistas, perversos e preconceituosos. Vejam só um ‘scrap’ que rola no Orkut, com uma foto da cantora britânica, e uma mensagem ‘de alerta’, dizendo coisas do tipo: ‘A culpa é sua! Nunca vi um cigarro dizendo me fume, ou uma garrafa de whisky batendo em uma porta e dizendo me beba...Ajuda ela teve, mas desperdiçou a oportunidade’. Mas, esperem um pouco, ela chegou a ser internada duas vezes, ninguém leva isso em conta? Quanta ânsia em achar culpados, quanta impiedade. Malha-se a droga, como se por trás dela não houvesse um ser-humano adoecido (e creio eu, que a doença vem mesmo antes da droga) que não pode ser tratado como um débil mental, alguém apático em relação à vida, um vagabundo sem-vergonha. A questão está longe de ser entendida como um desvio de caráter, apesar da dependência deslocar alguns valores de lugar. Acho que, já que não há mais nada a ser feito e que não adianta chorar o leite (ou o whisky, nesse caso seria mais apropriado) derramado, o que precisamos é encarar o problema de frente, como adultos. Se essas mortes não servirem para uma discussão franca e democrática (o que inclui ouvir principalmente os protagonistas – os usuários, as vítimas) sobre o assunto, aí sim se tornam vãs. Pela longa história ‘de amor e ódio’ entre a humanidade e as drogas, já passa muito da hora de abordarmos o assunto com mais seriedade, no âmbito não só da segurança pública, mas da saúde, da assistência social, da educação e da cultura. Fechar os olhos para isso é viver no atraso, no rastro de um discurso pautado puramente no conservadorismo, no tradicionalismo, na hipocrisia e na intolerância. E a princípio nem compartilho com FHC sobre a sua ‘regulamentação e descriminalização da maconha’, apesar de ver aí um início de conversa. Gostaria de ver e ouvir mais intelectuais em ação sobre isso, mais médicos, psicólogos, psiquiatras, sociólogos. No mínimo, as campanhas contra as drogas iriam ter que arrumar um jeito de serem mais honestas e eficazes. As drogas existem, são uma realidade. As pessoas, muitas dentro de nossas casas, de nossos círculos de amizade e trabalho, fumam, bebem, cheiram, se picam, tomam remédios sem receitas, na academia (que ironia) compram e tomam bomba. E quantas drogas industrializadas, agrotóxicos, quantos venenos ingerimos em nossas refeições diárias, misturados com arroz e feijão?
Na clínica, conheci pessoas que foram internadas oito, doze vezes. Saíam, se rendiam ao crack ou ao pó novamente, e retornavam, caso o presidente da instituição as aceitasse de volta. O que deve ser lembrado é que as drogas matam, mas não matam todo mundo que as usa; as drogas matam, mas a morte é uma inevitabilidade; as drogas matam, mas antes de serem uma ameaça provocam um prazer e um alívio que são cada vez mais disputados nesse mundo pós-moderno; as drogas matam, mas antes disso permitem uma outra visão da vida e auto-conhecimento, que o digam os sobreviventes, não poucos.













Não precisamos de mais drogas, nem de mais clínicas. Precisamos é de amor! Precisamos nos humanizar, nos sentir mais gente, dar e receber afeto, nos colocarmos no lugar das outras pessoas. Nem de mais dons e talentos nós precisamos. Precisamos, sim, saber onde estão escondidos os que nós já possuímos, e o que estamos fazendo com eles. Temos é que naturalizar mais a vida, esquecer um pouco o medo que ela traz. Temos que ter tesão. Temos que entender que as perdas também fazem parte da vida, assim como as conquistas e a esperança. Temos que conhecer o tempo e ler os sinais que ele traz. Deixarmos nos encantar pelas pessoas, aceitar as nossas diferenças e abrirmos mão do orgulho e dos ataques de estrelismo. Precisamos ajudar e compreender as pessoas naquilo que elas precisam receber e não naquilo que eu quero dar ou acho que tenho que dar. Precisamos estar cada vez mais cientes do nosso papel não na sociedade, mas na vida. Sermos simples, sinceros. Voltar a sermos criança, acreditar em Deus ao ponto de dependermos dEle, contarmos com Ele. Precisamos nos sensibilizar, botar pra fora nossas emoções e nossos sentimentos, sabermos que possuímos o maior tesouro do universo dentro de nós: uma alma. Pra nossa reabilitação ser eficaz, precisamos de ar puro, curtir os amigos, deixar a maldade de lado. Ao contrário das cobranças que nos são impostas, precisamos que confiem em nós. Necessitamos fazer nossas oportunidades, que aliás se desenham a nós a cada instante, em cada gesto, cada olhar. Precisamos fazer boas escolhas e saber que a vida nos ama, e está sempre (mesmo que as aparentes circunstâncias digam não) sorrindo para nós. Existem pessoas cujo perfil se encaixa perfeitamente nas normas e disciplinas do militarismo, com direito a ‘sim senhor, não senhor’, marchas públicas e tudo. Outras acham isso ridículo, e é um direito delas. E é curioso vermos que, quanto mais repressor é o ambiente familiar, mais rebeldes ‘sem causa’ surgem. Não são poucas as histórias de pais que, após dizerem terem feito tudo por seus filhos, os perdem para as drogas, e depois abrem centros de recuperação (agora é a vez do pai de Amy informar isso), talvez para se eximirem de alguma culpa, ou para continuarem mantendo a nobre sensação de que têm que fazer alguma coisa; um ato de heroísmo e auto-reconhecimento. Talvez a rebeldia sem causa dos filhos não fosse tão sem causa assim. Talvez deva haver outros modos mais interessantes de tratamento. Em ‘Rehab’, a canção-deboche, Amy mostrava outras opções frente a possibilidade de uma internação. Segundo ela, ‘eu não tenho tempo, prefiro ouvir Ray Charles, mas eu sei que as respostas não estão no fundo de um copo’. Lembro de ouvir dizer que em determinada vezes, Amy chegava no bar e dizia à garçonete: ‘Querida, se eu te pedir uma bebida, você não me dê, porque eu não posso’. Quer mais sanidade do que isso? Não tive o prazer de conhecê-la pessoalmente, mas, permitam-me fazer o advogado do diabo: ela pedia ajuda sim, e lutou como pôde. Agora mesmo os jornais estão dizendo que o que a fez morrer foi sua abstinência, a qual se submeteu de forma abrupta...(!). Vai saber...













Há de ser revisto os números (se é que existem) dos pacientes que realmente se curam nas clínicas, até porque, segundo a própria Organização Mundial de Saúde, essa doença é caracterizada como ‘incurável, progressiva e de determinação fatal’. Então, o que fazem as clínicas? O que é ser curado; não seria mais adequado falarmos de um controle ao invés de prometermos uma cura? E onde estão os outros meios alternativos para esse controle? Se bem que temos que admitir o avanço trazido pelas clínicas, se comparadas aos manicômios em vigor nos anos 70, para onde eram levados usuários de maconha (como no caso clássico que aconteceu com o escritor Austregésilo Carrano, que originou o livro ‘O Canto dos Malditos’ e o filme ‘Bicho de Sete Cabeças’).
De qualquer forma, como essa vida é complexa e melancólica, pra embalar mais um amor que se foi, estou ouvindo agora, de Amy Winehouse (como ela era boa letrista, sabendo falar das coisas da vida e de si mesma com ironia, inteligência, perspicácia e bom-humor), Tears Dry on Their Own, minha preferida. E crendo, mais que nunca, que, ao ser eu a sentir a minha dor, prefiro deixar que as lágrimas sequem sozinhas, e com a certeza de que eu quero amanhecer amanhã também, porque a vida, além de tudo, é linda.


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